Depois de meditar sobre o livro do Cântico dos Cânticos e compreende-lo a partir da ‘linguagem do corpo’, o Papa conclui sua reflexão sobre o matrimônio cristão com a história de amor entre Sara e Tobias. O livro de Tobias narra, em primeiro lugar, a vida de Tobit (pai de Tobias), um homem temente a Deus que depois de acidentalmente ficar cego, teve que confiar uma missão ao seu jovem filho. Como ele teria certa dificuldade em executá-la, pediu a Deus seu auxilio e proteção. Foi então que Deus enviou o anjo Rafael, que como um andarilho se apresentou a Tobias e o guiou em sua jornada. Porém Deus não tinha para Tobias apenas um guia, mas também uma esposa, e foi aí que o anjo Rafael apresentou Sara ao jovem que logo se apaixonou. No entanto, Sara trazia consigo uma história de muitas perdas, pois todos os homens que com ela se casavam morriam antes de consumarem sua união. Com as orientações do anjo para que não fosse conduzido pela luxúria (busca desordenada do prazer sexual), mas pelo desejo de agradar a Deus, seu destino foi muito diferente dos outros, pois teve uma longa vida repleta de bênçãos, filhos e felicidade. Este é um breve relato desta história de amor.
Antes de refletir diretamente sobre o livro de Tobias, o Papa São João Paulo II propõe uma espécie de relação entre os termos usados pelo casal do Cântico dos Cânticos com a relação de Sara e Tobias. Ele cita o final do livro do Cântico dos Cânticos (capítulo 8) quando o autor diz que ‘o amor é forte como a morte’, para fazer referência as mortes dos homens com a qual Sara havia casado anteriormente: “Na história do casamento de Tobias com Sara, entretanto, encontramos uma situação, parece que confirma enfaticamente a verdade sobre as palavras acerca do amor: ‘forte como a morte’. (…) Sara já tinha sido dada em casamento a sete homens (Tb 6, 14), mas cada um deles falecia antes de se unir a ela. (…) O jovem Tobias tinha razões para temer uma morte similar. (…) Portanto, desde o primeiro momento, o amor de Tobias teve que enfrentar um teste de vida ou morte. Se o amor prova ser forte como a morte, isso acontece acima de tudo porque Tobias (e Sara com ele) se dirigem sem hesitação a esse teste. Nele, a vida tem a vitória, e o amor se revela forte como a morte.” (TdC 114). Esta linda relação apresentada pelo Papa entre estes dois livros, é na verdade uma confirmação. A história de amor de Tobias e Sara torna concreta a afirmação de que o amor é ‘forte como a morte’, pois o amor verdadeiro vem de Deus, e foi Nele que Tobias depositou sua confiança. Por isso obteve a vitória que os outros não tiveram.
São João Paulo II ressalta também, em sua Teologia do Corpo, vários pontos importantes deste santo casamento que deve ser modelo para todo casal cristão. Entre estes pontos ele cita o termo ‘irmã’ do qual Tobias chama Sara na noite de núpcias, quando os dois se colocam em oração. Para o Papa este não é apenas um detalhe, mas um ponto indispensável de reflexão. Ele ensina que: “Quando lemos a descrição do casamento do jovem Tobias com Sara, encontramos que Tobias a chama de ‘irmã’. (…) Isso significa que entre os jovens também deve ser formada uma relação recíproca através do casamento similar àquela que une irmão e irmã. (…) Através do matrimônio homem e mulher se tornam irmão e irmã de um modo especial. O caráter fraternal parece estar enraizado no amor esponsal.” (TdC 114). Este termo também expressa a pureza do olhar que ambos tiveram um como o outro, pois se antes os homens que se casavam com Sara eram tomados por um olhar de cobiça e luxúria, o anjo ensina que o olhar que preserva a vida do matrimônio é um olhar fraterno, que reconhece que Deus é Pai dos dois e por isso ambos são irmãos: “O anjo respondeu-lhe: Ouve-me, e eu te mostrarei sob quem o demônio tem poder: são os que se casam, banindo Deus de seu coração e de seu pensamento, e se entregam à sua paixão como o cavalo e o burro, que não têm entendimento: sobre estes o demônio tem poder.” (Tb 6, 16-17).
Ainda sobre a oração de Tobias e Sara, São João Paulo II ensina que: “Na oração de Tobias e Sara a dimensão da liturgia própria ao sacramento é ressaltada ante o horizonte da ‘linguagem do corpo’. Tudo, de fato, ocorre durante a noite de núpcias do casal.” (TdC 114). É aqui que a reflexão do Papa assume uma dimensão ainda mais completa acerca da ‘linguagem do corpo’ do qual ele tanto já explicou anteriormente. O casamento de Sara e Tobias não só ilustra o que ele define como ‘linguagem do corpo’ (como já apresentou no livro do Cântico dos Cânticos), mas eleva esta linguagem a uma dimensão litúrgica, ou seja, do sacramento do matrimônio: “A ‘linguagem do corpo’ se torna a linguagem da liturgia, porque é com base e com fundamento nessa linguagem que o sinal sacramental do matrimônio é constituído. (…) É através da ‘linguagem do corpo’ relida na verdade – na verdade do amor – que o sinal sacramental do matrimônio é construído na linguagem da liturgia e no ritual litúrgico como um todo. (…) Na ótica do mesmo texto pode-se ver também o modo como a linguagem e o ritual da liturgia formam (devem formar!) a ‘linguagem do corpo’. (TdC 117)
A história de Tobias e Sara, mais precisamente o relato de sua união conjugal, expressam de modo extremamente significativo uma ‘linguagem do corpo’ que é elevada a dimensão do mistério litúrgico do matrimônio. A consumação daquele amor, que foi pautado na oração, na espera e no desejo de agradar a Deus acima de tudo, venceu o mal, que outrora conduzia à morte. Assim também, o Papa explica, que todo casal enfrenta esta mesma luta: “Os esposos, unidos enquanto marido e mulher, se encontram em uma situação na qual os poderes do bem e do mal lutam entre si.” (TdC 115). Deste modo, o matrimônio de Tobias e Sara se tornam uma luz para iluminar este sacramento de um modo geral, para que todo casal compreenda que só em Deus o casamento encontra forças para vencer o mal e a morte.
Por Valdo Júnior | Missão Maria de Nazaré
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