Ele se sentou em meu sofá e recostou-se ao braço do assento. Olhou as imagens de santos sobre a estante e os vários quadros na parede. Anjos, santos, os pequenos ostensórios… Viu, enfim, a imagem da Virgem das Graças. Voltaram à Sua Sagrada Face a leveza, a jovialidade, o sorriso menino. Pareceu-me tão apaixonado e enternecido que também eu me deixei encantar pela imagem e pela ternura que Seu rosto exalava. Deixei escapar um misto de riso e suspiro. Ele se voltou rapidamente para mim, dizendo com graça: – Ela é a mais bela dentre todas as criaturas, incomparável para todo o sempre! E sabes por quê? Porque nela habitou o amor com o qual o homem não é capaz nem mesmo de sonhar! – Agora foram meus olhos que marejaram, e uma das lágrimas acabou por escorrer-me a face, à qual me apressei em enxugar. Ele sorriu e disse: – Estas tu não deves enxugar! Deixa que escorram! – A censura, doce e carinhosa, fez-me corar e lacrimejar um pouco mais, e Ele pareceu gostar. Voltou os olhos para a imagem que o enternecera tanto, dando-me a chance de me recompor.
Por fim, olhou-me novamente, agora disposto a me escutar. Não que antes não o estivesse, mas, agora, sem distrações. Novamente perdi a voz e pedi desculpas por não ter algo a oferecer para um lanche ou qualquer coisa, pois estava sozinho naquele dia. Ele me olhou, sorrindo de modo discreto. Olhou-me profundamente nos olhos, e parecia ver minha alma por completo. Seu olhar invadiu-me, rasgou-me a alma em duas. Então, sorrindo muito mais com os olhos do que com os lábios, disse-me: – Sim, eu sei que estás sozinho! Sei que tens estado muito sozinho ultimamente! -. E eu não pude fazer outra coisa senão desviar os olhos dos Seus, olhos nos quais eu via majestade e singeleza. Busquei o chão, a TV, as paredes, ainda que atraído pelo olhar do qual há pouco eu desviara. Ele insistia em fitar-me, e seu olhar sobre mim me trouxe o entendimento de sou eu mesmo quem, muitas vezes, busco e me condeno à solidão, e isso acontece cada vez que desvio meu olhar dos olhos Dele. Ele mesmo sabia do medo que eu tinha e tenho de encará-lo. Ele entendia meu medo, pois também experimentou esse sentimento. Não me disse nada, mas tocou meu ombro e isto bastou. Levantei o rosto e vi que Ele também chorava como eu, ainda que em meio a isso ambos tenhamos esboçado um sorriso um para o outro. Nós normalmente nos comovemos com a dor dos que amamos. Ele sentia o que eu estava sentindo. Acariciou meu rosto do mesmo jeito que meu pai fazia, deu um tapa em minha perna e me encorajou a falar tudo que eu precisava.
Falei, então, de mim, falei daqueles que amo e daqueles que não consigo amar; falei do que almejo e do que tenho medo; falei dos sentimentos que são como correntes que prendem meus sonhos ao chão. Ele me ouvia atentamente e, vez por outra, antecipava a conclusão de alguma situação. Eu me agitava, interrompia as frases, entrecortando-as com tosses, pigarros e outras fugas momentâneas. Ele as notava, mas delas não fazia caso, fingindo não notar minha hesitação e me observada de maneira tão profunda que era inútil fingir qualquer coisa, vestir qualquer máscara. Ele mirava o meu coração.
Falei dos meus erros, do que eu julgava ser erro nos outros e do que eu sabia que os outros condenavam em mim. Ele rabiscava palavras numa folha de papel que apanhara sobre o sofá. Não estava disperso ou desinteressado, mas mais compenetrado na essência do que eu dizia e não no que era acidental. Ora sorria, fechava os olhos, permitia-me saber que não eram necessários relatos muito detalhados. Tudo estava a Ele descoberto, mesmo o que eu não dizia, fosse por medo ou hipocrisia. Mais de uma vez vi seus olhos congestionarem-se e seu semblante tornar-se irado. Entretanto, não direcionava a mim esse olhar, mas tão somente à causa dos meus erros mais profundos. Eu me envergonhava nesses momentos. Ele, porém, olhava-me e me acolhia em seu olhar, e me pedia outro copo d’água. Sentia uma sede ainda mais intensa nesses momentos.
Então, me calei, esperando que que Ele me dissesse algo. Eu tinha certeza de que Ele tinha muito a me falar, e eu estava também tão sedento por ouvir! Mas Ele não disse nada. Certamente ele sabia que eu não havia dito tudo que precisava. Havia uma dor calada em mim que não me permitia dizer. Uma dor que parecia viva, profunda, intensa, como um organismo parasita em mim. Ele viu minha dor, percebeu o que eu dizia sem falar.
Enfim, nos levantamos, e Ele me chamou para acompanhá-lo ao lado de fora de minha casa. Fui sem questionar, pois sentia que era o que devia fazer, ainda que não entendesse o porquê. Uma brisa leve que parecia preparada para aquela tarde e nos tangia o rosto. Ele agora olhava para o céu como quem espera um sinal, uma voz. Não ouvi nenhuma, mas Ele sim. Fechou os olhos e disse algumas palavras num tom muito baixo, as quais não compreendi e numa língua que não me era familiar. Abriu os olhos e pediu que eu me aproximasse. Fiquei gelado. Ele notou meu desassossego interior e sorriu, me disse que não tivesse medo. Ele abriu os braços… me abraçou… me alcançou… me protegeu. Não pude conter as lágrimas. Respiramos fundo juntos, ao mesmo tempo. Impossível dizer qual a impressão de respirar junto com Ele, respirar no mesmo ritmo e compasso do Seu Divino Coração.
Por fim, nos separamos. Ele me olhou nos olhos outra vez. Tocou-me o rosto e já sorria com saudades. Notei que se tratava de Sua despedida. Ou um ”Até breve!”. Mas não poderia ir sem me dizer algo, pois notava que agora, após tão singular encontro, era o meu coração que se encontrava sedento. E Sua voz, forte e serena, reverberou em mim de modo inconfundível:
“Não temas! Minhas promessas para ti hão de se cumprir!
E não te deixes enganar: sabes bem que Eu já as revelei a ti.
Ensurdece teus ouvidos para os sussurros insidiosos do Inimigo contra ti.
Tu tens a Mim, e Eu tenho a ti! Isto te basta!
Ouve minha voz e serás vencedor!
Tende coragem, pois EU ESTOU CONTIGO!”
E enquanto eu o ouvia, subitamente, já não estava mais lá. Somente o eco de Sua Voz residia agora em mim, e tudo preenchia.
Foi quando me aproximei da porta, que ainda estava entreaberta. E ali eu permaneci por um longo tempo, envolto na eternidade que acabara de viver.
Assim findou o dia, e eu ainda não sabia que nome dar a tudo isso. Deus veio me visitar. Chegou sem fazer alarde, tão singelo quanto homem, tão majestoso quanto Deus. Sentou-se em minha varanda e tomou alguns copos de água comigo. Visitou minha história e se foi, sem me deixar, contudo. Permaneceu em mim. Foi-se, mas não me abandonou. E eu agora parecia mais completo, mais eterno, mais perto daquilo que de fato sou.
E a porta permaneceu entreaberta…