As experiências originais vividas por Adão e Eva e apresentadas no capítulo 2 do livro do Gêneses, isto é, solidão, comunhão e nudez original, dependem de uma característica fundamental, que permite que estas experiências edifiquem a personalidade do ser humano antes do pecado. Esta característica é a inocência original. É muito comum em nossos relacionamentos, percebermos que nos falta hoje tal inocência. Quando olhamos para um corpo nu, por exemplo, somos incapazes de enxergarmos no outro a presença de Deus, a não ser se nosso olhar já tiver sido transformado pela graça e pela virtude da pureza.
São João Paulo II diz na Teologia do Corpo que “essa inocência pertence à dimensão da graça contida no mistério da criação, isto é, àquele misterioso dom oferecido ao íntimo do homem ao coração humano, que permite a ambos, homem e mulher, existirem desde o princípio na recíproca relação do dom desinteressado de si mesmos” (TdC 16). Neste sentido, podemos dizer que antes do pecado original o olhar entre o homem e a mulher não era fixo no corpo, ou seja, não tinha no corpo sua finalidade. O corpo era como que um meio, um sinal que aponta para Deus, era um ícone e não um ídolo, ou seja, o corpo levava à contemplação do Criador e não se fechava em si mesmo. A partir do pecado, o olhar humano foi envolvido pela cobiça, o desejo desordenado de buscar no outro sua satisfação.
A inocência original tinha como princípio fundamental a “pureza de coração”, o que significa dizer que não havia até então um entendimento de que o corpo pode significar um objeto de prazer, como pensa alguém tomado pelo utilitarismo. A pureza de coração expressada por esta inocência original, possibilitava o amor recíproco e verdadeiro entre o homem e a mulher e a visão de um para com o outro como um dom. O Papa afirma que: “Reduzir o ser humano (o homem para a mulher e a mulher para o homem) interiormente a puro ‘objeto para mim’, deve assim assinalar o princípio da vergonha” (TdC 17).
A vergonha do corpo descrita no capítulo 3 do Gênesis, ocasionada pelo pecado original, revela, portanto, a perda da inocência original que manifestava a condição ideal (e desejada por Deus), para a relação humana. “A inocência original manifesta e ao mesmo tempo constitui o ‘ethos’ perfeito para o dom” (TdC 18). O que restou foi uma espécie de ‘eco’, como que uma voz de Deus em nós, nos chamando a retornarmos a esta condição de inocência original, que restabelecida pela redenção do corpo em Cristo, opera em nós na vivência da pureza de coração e na decisão pelo amor autêntico.
Embora o pecado tenha deixado esta marca em nosso corpo, é também através dele que iremos restabelecer a nossa condição, tornando-o como instrumento do amor, ou seja, um sinal visível, portanto, sacramento, que nos reconduz ao plano divino. Deste modo, para concluímos esta reflexão, deixo uma citação da catequese número 19, em que o Papa apresenta uma das mais belas expressões de sua obra: “O corpo, de fato, e só ele, é capaz de tornar visível o que é invisível: o espiritual e o divino. Foi criado para transferir para a realidade visível do mundo o mistério oculto desde a eternidade em Deus, e assim ser sinal d’Ele. Este sacramento primordial provém da fonte divina da santidade, e ao mesmo tempo é instituído para a santidade”.
Valdo Júnior
Cofundador da Missão Maria de Nazaré